{012} Não existe isso de não existir mais
Uma das minhas memórias mais antigas é de quando eu voltava andando do prézinho com minha vó. Um dia, percebi como ela sempre adivinhava se os carros iam virar ou não, e assim decidia se a gente podia atravessar alguns cruzamentos..
"Vó, como cê sabe que o carro vai virar?", perguntei.
“É só ver se ele tá dando seta”, ela respondeu, rindo, e segurou minha mão.
Fiquei atento, procurando a tal seta. Imaginei que os motoristas levantavam uma plaquinha pela janela, com uma seta desenhada, quando iam virar. Um carro passou reto, outro virou. Nenhuma placa. Ela apertou minha mão e atravessamos.
“Ué, vó, não vi nenhuma seta.”
“É a luz amarela piscando, fio”, ela respondeu, rindo mais, e eu já não ia mais achando tanta graça. Então não era uma placa, era uma seta feita de luz. Imaginei uma daquelas de neon, cheia de lâmpadas piscando, em cima dos carros. Olhei fixo. Nada.
“Ó, esse vai virar”, ela disse. O carro virou. E eu, ainda sem ver seta nenhuma.
Desisti.
Chegamos em casa e, naquele dia, teve início um dos meus grandes objetivos na vida: aprender a enxergar a seta invisível dos carros, que só minha vó era capaz de ver. “Caraio, a véia é fudida memo”, pensei — só que com outras palavras, porque meu vocabulário era um pouco diferente naquela época.
Uns 30 anos depois
Meu primeiro texto nesse Substack quase foi sobre minha vó. Quando voltei de uma viagem pro Brasil, achando que talvez fosse a última vez que eu a veria por conta do seu estado de saúde, quase publiquei um texto todo reflexivo sobre a brevidade da vida e sobre como precisamos, sim, dar início aos nossos empreendimentos antes que tudo acabe. Ainda bem que me dei conta de duas coisas e desisti a tempo:
Isso aqui não só não é um empreendimento, como é algo absolutamente irrelevante — e isso sim acabou sendo minha motivação pra começar.
Minha vó não tinha morrido.
Acabei escrevendo sobre outro assunto, mas a morte continuou rondando meus pensamentos. Eu não achava normal chegar nos 30 anos, com uma família enorme como a minha, e ainda não ter perdido ninguém próximo. Não que eu desejasse, obviamente, mas rolava uma curiosidade da minha parte. Como será que eu iria lidar quando alguém morresse? Será que eu ia chorar por dias, sendo que eu mal choro? Ou agiria com naturalidade, cumprimentaria os parentes no velório com um sorriso tranquilo e soltaria frases como “a vida é mesmo um sopro, né?” e “quando chegar minha vez quero ninguém triste, hein!”
Eu tinha também a preocupação de ficar rindo de nervoso, tipo a Claire de Modern Family. O que parece aleatório, mas tem motivo, porque já me aconteceu antes. Como no dia em que eu queria dizer pro meu pai que ia largar engenharia pra fazer faculdade de jogos, mas fiquei rindo, segurando um livro de game design. Isso também pode ou não ter acontecido na primeira vez que transei com minha esposa, mas não falo sobre minha vida íntima.
Um ano depois
Depois de já ter publicado várias abobrinhas, decidi publicar mais uma, e escrever sobre essa minha virgindade com a morte e os mistérios que ela me trazia. Mas acabou que não deu tempo de publicar.
Na metade do meu rascunho, a morte resolveu finalmente dar as caras e levou um parente meu: o Tio Aloizio.
E essa foi minha primeira lição sobre a morte: É tanta gente pra morrer que às vezes morre alguém do nada, que nem tava no radar.
Infelizmente eu não tava no Brasil quando meu tio faleceu, mas senti o luto de longe. Não, eu não ri. Chorei de leve pensando na minha tia, meus primos, pelos momentos que tive com ele. Enquanto tentava também entender esse negócio de que nunca mais o veria. Como é possível isso? Quem foi que inventou esse conceito?
Mas, entendendo ou não, a morte quer mais é que se foda. Ela só acontece. Joguei fora meu rascunho, porque agora não fazia mais sentido. Eu tava tendo contato com a morte naquele exato momento. Comecei então a escrever sobre o Tio Aloizio. Nem tanto sobre seu falecimento, mas sobre uns causos dele, que era uma pessoa bem peculiar. Mas meu rascunho foi interrompido novamente, pois a morte veio com mais uma das suas lições não solicitadas: a de que ela não tem limites.
Minha vó, que já tava internada há alguns dias, foi piorando aos poucos, até que minha mãe me disse que ela não aguentaria muito mais. Assim que soube, comprei as passagens pro Brasil pro dia seguinte. Ainda naquele mesmo dia, fui a um evento e tentei não pensar muito no que acontecia do outro lado do planeta. Mas, quando voltei pra casa pra arrumar as malas, tudo que eu tava segurando veio de uma vez. Fiquei completamente sem rumo no metrô, olhando a vida passar pela janela.
Passei a viagem imóvel, anestesiado, com a cabeça e as costas queimando, enquanto meu cérebro tentava montar aquele quebra-cabeça de emoções. Por um momento, tudo perdeu o sentido.
Como assim minha vó ia deixar de existir? Por que ela? Quem escolhe quem vai e quem fica? O que eu tava fazendo ali, do outro lado do mundo? O que eu tô fazendo da minha vida? Que porra é essa? O que a gente tá fazendo aqui, nesse lugar cheio de gente, pra se conectar, amar e depois ver todo mundo desaparecer?
Desci do metrô, já era noite. Parei numa esquina, e até a ideia de ser assaltado ou atacado ali não me fazia diferença nenhuma. Se alguém chegasse querendo me matar eu continuaria imóvel — favor desconsiderar o detalhe de que eu tava no Canadá, e é fácil não temer assalto onde não tem assalto. Mas sim, eu tava num modo de total desconexão. Como se minha mente tivesse ido pra outro plano, e esse aqui já não importasse mais.
Enquanto esperava o sinal abrir, fiquei observando as pessoas passando. Uma mulher com sacola de mercado. Um casal de mãos dadas. Um morador de rua fumando alguma coisa. Todo mundo seguindo em frente, como se tudo aquilo fizesse sentido. Carros indo, vindo, dando seta, trocando de faixa. Todos cúmplices daquele absurdo. O sinal abriu, e eu não consegui fazer outra coisa além de também seguir em frente, entrando pro time dos cúmplices.
Um dia depois
Depois de vinte e quatro horas atravessando o hemisfério, cheguei ao Brasil. Ela tava tão fraquinha que eu achei que nem a um suposto velório eu conseguiria ir, por conta de todo aquele tempo viajando. Mas felizmente consegui visitá-la ainda no hospital. Ela já não conseguia abrir os olhos nem falar, mas começou a abrir e fechar a boca várias vezes quando peguei na mão dela e disse meu nome. Mesmo sem som, eu sentia tudo que ela queria me dizer. Fiquei um tempão olhando ela ali, apenas existindo, com uma respiração que parecia mais exaustiva a cada minuto que passava. Quando me despedi, no calor do momento, dei uma de Dom Pedro I e disse que ia ficar no Brasil. Que não ia pegar mais merda de avião nenhum — essa foi uma forma que eu achei na hora de dizer pra ela ficar tranquila, porque ela tinha pavor de que eu viajasse de avião.
Passou um dia. Depois, outro. Só no terceiro, Vó Maria se foi. "Carai, essa véia é fudida memo", disse a morte, depois da canseira que teve pra concluir o job.
Algumas horas depois
Mas o longa-metragem absurdo da vida não terminava, e lá estava eu, horas depois, vendo minha vó deitadinha, completamente imóvel, num caixão. O que, sim, é esperado de quem morre, mas não deixa de ser absurdo olhar pra alguém que você viu se mexendo a vida inteira e, agora, não estar se movendo nem um milímetro. Nem um sinalzinho de respiração.
Ela tava bem magra e com alguma coisa na boca que parecia aqueles protetores bucais de dormir, o que, de algum jeito, fazia parecer que ela ia falar a qualquer momento. Lembrei das vezes que ela me chamava lá do quintal:
"João Paulo!"
Aí eu botava o chinelo, levantava, mas nem dava tempo, já vinha outro:
"João Paulo!"
Me apressava mais, tropeçava no chinelo, e ainda antes de eu sair na porta, mais um:
"Ô, João Paulo!!!"
E eu ficava puto com o pouco tempo de reação que ela me dava pra eu saber o que ela queria. Mas naquele momento, no velório, tudo que eu queria é que ela levantasse daquele negócio e me chamasse de novo. Quantas vezes quisesse. Mesmo que isso traumatizasse todo mundo ali presente.
Se por um lado faltou movimento por parte dela, acabou sendo compensado por parte dos outros. O tanto que Tia Nena mexeu na cabeça dela foi brincadeira. Eu passei o tempo todo com aquele sentimento de quando alguém quer mostrar algo numa tela e, em vez de só apontar, fica metendo o dedo e deixando marca.
Toda vez que alguém se aproximava do caixão, Tia Nena ia explicando alguma coisa e tocando no rosto da minha vó. Mexia no cabelo, na mão, tirava o véu, botava o véu, descansava a mão nela como se fosse uma almofada. E eu observando, assustado e preocupado de mexerem tanto que ela acabasse torta no caixão.
Claro que isso tudo só era chocante pra mim, que não tava acostumado com velório. Mas eu tava, sim, atento a todos os movimentos e preocupado com qualquer (nova) tragédia. Medo da criança apoiada no caixão. Medo de acontecer um piripaque com a minha tia, que já tinha perdido o marido uma semana atrás. Medo da vela que tava perto demais da coroa de flores — mas avisei o Tio Toninho e ele moveu o suporte pra longe.
Essa coroa de flores, inclusive, que deu origem a uma side quest, pois tinha escrito nela “saudade eterna de seu neto”, e passaram o velório inteiro tentando descobrir quem era o neto. No fim, acabaram descobrindo que foi um cara que nem neto de sangue era.
E, por fim, o fim. O caixão sendo fechado. A caminhada até o túmulo. Três funcionários do cemitério movendo o caixão pra ser enterrado, e eu, novamente preocupado, torcendo pra que ninguém deixasse ele escapar e minha vó saísse rolando. Mas fica o registro que eles são muito cuidadosos. Fazem tudo em câmera lenta e atenção milimétrica. Devem ter é mais medo que a gente de fazerem merda naquele momento. Mas enfim. Caixão posicionado. Cimento passado. Túmulo fechado.
Fim.
Inconclusão
Agora, duas semanas depois, a verdade é que tudo ainda continua meio que um mistério. Ainda é difícil explicar como é perder alguém. E, pra ser sincero, não sei se é incapacidade ou se é minha mente tentando me proteger, mas não sinto que perdi minha vó, porque ela parece estar mais presente do que nunca.
Não tem como dizer que ela não existe mais se eu fecho os olhos e ainda vejo ela, com seus menos de um metro e meio, rachando o bico e tapando o rosto com a mão. Ainda vejo ela se aproximando na hora de um tchau, falando que "tá cedo ainda", vindo apertar minha mão e me passando discretamente uma nota amassada de dinheiro, tal qual um traficante, pra nenhum outro neto ver. Ainda ouço ela me chamando três vezes em cinco segundos. Falando que eu tô bonito e que eu sou o neto queridinho dela.
Não tem como dizer que ela não existe mais se eu só tô aqui graças a ela. Se ela é pra sempre parte de mim, dos meus princípios, dos meus costumes, da cor da minha pele. Se ela tá presente em todas essas palavras, e em palavras que ainda virão. Não existe isso de ela não existir mais.
Quando criança, eu não enxergava seta nenhuma nos carros, mas confiava sempre na mão da minha vó me puxando pra atravessar. E agora pode ser a vez de ela se tornar invisível, mas, mesmo sem vê-la, sei que ela vai continuar segurando minha mão em cada rua que eu atravesso.
Por hoje é só,
João Paulo
João Paulo!
Ô, João Paulo!
✨️💕✨️
Meus sentimentos, João :( Tenho certeza que ela sabe que foi muito amada por ti. Aproveita o momento em família ❤️